domingo, 28 de março de 2010

Gentrificação da Essência Artístico-Sentimental

(ou Indignação com os Rumos da Arte)

A trajetória poética de Oiticica desloca-se da fatura impecável, quase asséptica, de sua produção inicial, marcada pelo "construtivismo" internacional, para um "construtivismo favelar". Essa chegada ao Brasil pela via universalista da invenção formal "concreta" e "neoconcreta" consuma-se como o escultor Jackson Ribeiro o leva ao Morro da Mangueira, no Rio de Janeiro. "Tudo começou com a formulação do Parangolé em 1964, com toda a minha experiência com o samba, com a descoberta dos morros, da arquitetura orgânica das favelas cariocas (e consequentemente outras, como as palafitas do Amazonas) e principalmente das construções espontâneas, anônimas, nos grandes centros urbanos - a arte das ruas, das coisas inacabadas, dos terrenos baldios etc. Parangolé foi o início, a semente, se bem que ainda num plano de idéias universalista (volta ao mito, incorporação sensorial etc.), da conceituação da Nova Objetividade e da Tropicália."

"Hélio Oiticica - Museu é o Mundo"
Curadoria

[Madball: "Tight Rope"]

Construtivismo favelar? Arte das ruas? Terrenos baldios? Todos esses termos me remetem às camadas menos abastadas da população, quando penso em Brasil. Quando ouço nomes como Billie Holiday e Nina Simone nas rodas intelectuais regadas pelos melhores vinhos e mais belos cartões de crédito e talões de cheques, me indago sobre a incoerência desta relação. Incoerência? Não compreendeste de qual relação falo? Ou em que consiste tal incoerência? Pois bem...

[Agnostic Front: "Victim in Pain"]

Seria o destino da arte uma espécie de "desvio de carga"? Porque vejo com grande pesar a forma bizarra com a qual representações artísticas oriundas das favelas (não espera tu terminologias politicamente corretas; não lerás aqui "comunidades humildes" ou quaisquer outras formas de hipocrisia, salvo em forma de ironia) e dos marginais (indivíduos à margem da sociedade, geralmente execrados como escória) adentram os meios drapejados de diamantes (pedras preciosas de alto valor financeiro, geralmente conseguidas às custas do trabalho semi-escravo em Serra Leoa, por exemplo), e, por consegüinte, se descaracterizam.

[The Clash: "London Calling"]

"Mas esse rapaz só pode ser um extremista fundamentalista ou um retrógrado conservador, fechado em seu mundo de arte marginal." - Será?

[Type O Negative: "Halloween In Heaven"]

Não me refiro à hermetização da arte, mas à tristeza existente em sua gentrificação¹. A arte de Hélio Oiticica, por exemplo, é claramente inspirada na realidade dos morros cariocas e ambientada na pobreza; e hoje, passados trinta anos de sua morte, encontra-se envolvida por uma aura que, definitivamente, não reflete a favela. Mas a questão é: quantos moradores do Morro da Mangueira admiram este seu ilustre & falecido admirador? Ou de tantos outros "Morros da Mangueira" espalhados por este país? - Quantos dos que conversam em bares caríssimos sobre a genialidade de Billie Holiday ou a beleza inebriante da voz de Nina Simone sabem do que se trata a tristeza inerente em suas interpretações? Quantos possuem na memória as marcas semelhantes às que deram origem a tais obras irrepreensíveis, como "Strange Fruit", de Simone?

[Rudi: "Taivas Saa Odottaa"]


Compreende-se não ser possível manter a arte, ou seja qual for a expressão de sentimento, em um claustro eterno, e sequer creio ser esta uma atitude coerente. Mas a apropriação realizada por A e B, e a conseqüente exclusão de C, D e E me é inconcebível. Me entristece não possuir as ferramentas para tal atitude, digamos, revolucionária (ou terrorista), mas as palavras de ordem são: "Toma para ti o que é teu de direito!".

[Paul Cantelon: "Sunflowers"]

Esquerdista? Terrorista? Não. Simplesmente verdadeiro.

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¹. O enobrecimento urbano, ou gentrification, diz respeito à expulsão de moradores tradicionais, que pertencem a classes sociais menos favorecidas, de espaços urbanos e que subitamente sofrem uma intervenção urbana (com ou sem auxílio governamental) que provoca sua valorização imobiliária.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Trompetes e Saxofones Misantropos de Miles Davis & John Coltrane

(ou Um Breve Ensaio sobre a Misantropia)

[Ana Carolina: "Hoje Eu Tô Sozinha"]
Como suponho que o título revele, este texto não traz grandes floreios sobre as responsabilidades sociais, tampouco discorre a respeito dos problemas do mundo. Trata-se de uma disgressão acerca do eu. O ego, mais seu centro que suas periferias; o egocentrismo e a misantropia (Em tempo - Misantropia: s.f. Horror à criatura humana; aversão à sociedade.).

[Madeleine Peyroux: "Careless Love"]

O fato é que há muito de nós que não nos é inato (percebe, caro leitor, a tendência ao social? Acabo de afirmar que o texto trata do "eu" e engendro, logo de cara, um "nós" em meio às linhas pseudo-misantropas. Mas tem paciência, rogo-te). Quanto não nos é adicionado ao longo de repetidas mentiras e atrasados conceitos, deliberadamente jogados perante nossos olhos, derramados em nossos ouvidos e empurrados glote, epiglote & traquéia abaixo? Todavia, mais preocupante é: Quanto disso não nos é absorvido por vontade própria, e assimilado ao que costumamos corriqueiramente chamar de "eu"?

[sigur rós: "Milanó"]

Pode-se dizer, então, que a partir do momento que este processo se dá com uma parcela considerável de humanos que compartilham de um mesmo território e, teoricamente, de uma mesma cultura, surge algo como uma "consciência coletiva do que é certo, errado, censurável e passível de morte por fuzilamento". A isso se convencionou chamar "Ética" (substantivo). E, a tudo que foge a tais padrões, "Anti-ético" (adjetivo).

[Marilyn Manson: "Coma White"]

O EGOÍSMO É ANTI-ÉTICO.

[300,000 Verschiedene Krawalle: "Transcendental Storm"]

Mas o sacrifício, o martírio, a pobreza e o sofrimento são eticamente louváveis. Acredito ser um contra-senso perguntar a razão de um por quê coletivo em um texto abertamente voltado ao âmbito do indivíduo (mesmo já tendo apelado a termos como "humanos", "compartilhar", "coletiva" dentre outros, mas anteriormente roguei-te paciência, caro leitor), então, que haja, enfim, um direcionamento para tantos rodeios acerca das coletividades individuais ou individualidades coletivas dessa famigerada ética e de sua relação com o egoísmo.

[Laibach: "God is God"]

O fato é que, abandonando qualquer senso de justiça, moral, ética ou conceito social, abraço (sim, eu, H.) afetuosamente a mais eticamente execrável das vicissitudes: do amor ao próximo para o horror social. Da benevolência à crueldade sádica. Da devoção ao desprezo. Do perdão ao esquecimento. Ou (creio ser esta a mais perfeitamente clara descrição) do outro para o eu. Em outros tempos, explicar-me-ia a respeito de razões ou justificativas para tal, mas hoje, não me é necessário. Minha vontade e minha consciência me guiam por onde quer que eu me atreva a pisar, e desta forma, torno-me mais uma vez senhor de meu destino e ações. "Nada permanece.
Nada me prende aqui." - já dizia Tilo Wolff. E toda a supracitada exposição sobre os conceitos sociais, a ética e todo o enfadonho deste ensaio nada mais foi que um pano de fundo, uma cozinha de jazz, com o piano, a bateria e o contrabaixo sociais; para que Miles Davis & John Coltrane pudessem solar seus trompetes e saxofones misantropos.

[Laibach: "Krst Pod Triglavom"]

Correto? Impetuoso? Belo? Reprovável? Talvez, mas quem julga? Mary Shelley apesentou o criador que vira as costas para a criatura. Quem é o monstro e quem é a vítima? Mas, mais importante que isso é: Se és o monstro, a quem deve tu pedir perdão? Deve tu pedir perdão?

[Vomito Negro: "Escape"]

Não. Não mais.